Eu não sabia que morar aqui seria tão caro. Além disso cada dia aqui também é muito mais difícil do que os dias que eu tinha que estudar.
Cresci ouvindo de meus pais que eu deveria ter um emprego bom, pois se eu tivesse que ser pescador ou ir para um cabo de enxada eu iria sofrer muito. Aquilo era repetido sempre que eu tirava uma nota baixa ou amanhecia com preguiça de ir para a escola. Então eu tinha muito claro em minha mente que, apesar de estudar ser ruim para mim, eu imaginava que aqueles tipos de trabalhos que meus pais me "ameaçavam" que eu teria que trabalhar se eu não me saísse bem na escola, eram o mesmo que uma tortura diária. Mas a verdade é que estudar para mim também era uma tortura. Eu também ouvia as pessoas falando que estudar era pra arranjar um bom emprego, porém eu via gente com diploma trabalhando naqueles trabalhos torturantes que eu já te expliquei. Eu via isso desde quando comecei a me perguntar: para quê eu tinha que aprender aquelas coisas chatas? Os adultos repetiam como em um coro: "PARA TER UM BOM EMPREGO". Então eu já sabia que aquilo não serviria para mim. Meus pais não tinham condições de montar um escritório para mim se eu quisesse ser advogado e lá minha comunidade não tinha emprego para eu ganhar bem. Então eu estava decidido que estudar não valia a pena.
Mas apesar de eu achar aquela decisão algo lógico, eu tinha que ouvir broncas por cima de broncas dos meus pais e dos professores. Já fui não sei quantas vezes parar na sala do diretor. Ninguém queria aceitar minha decisão de não usar minha vida em algo que eu via e ouvia que não servia para nada. Até os professores diziam que estudar não garante um emprego, mas poderia ajudar a encontrar um emprego melhor. Eu não via nada de bom pra trabalhar naquela comunidade. Todo mundo que trabalhava em alguma coisa, vivia se reclamando do sofrimento que era aquela vida.
Até que quando eu estava no 6° ano, comecei a perceber que tinha alguns conhecimentos que eram interessantes na sala de aula. O problema é que eu não sabia nem ler direito. Quando eu tentava participar das explicações na sala, eu sempre dizia algo errado que meus colegas já sabiam porque tinham aprendido nas séries anteriores, todos riam de mim. O professor também dizia que não pudia me ensinar algo que não era do programa daquela série. Então eu percebi que não poderia mais voltar atrás em minha decisão de não estudar. Mas e agora, eu não "concluí os estudos ainda?" O jeito seria ir aguentando a rotina chata e excludente de cada 50 minutos de aula.
Hoje me lembrando de tudo isso, eu cheguei a conclusão que todo mundo gosta de aprender alguma coisa o tempo todo. Descobri que é prazeroso aprender algo, descobrir novas informações, novas tecnologias, lugares, enfim. Como eu não aprendi essas coisas no dia dia da escola, eu descobri um jogo no celular que era possível eu viajar para vários lugares, era possível eu conversar com outros jovens que vivia a mesma situação que eu de sofrer tendo que ir para a escola. Nesse jogo também, eu podia ter o que eu quisesse e fazer o que eu quisesse, até matar as pessoas que passassem pelo meu caminho. Podia tomar o carro delas e espancar elas para colocar todo aquele meu ódio pelas regras da vida pra fora.
Um dia nesse mesmo jogo, tinha um cara de uma cidade grande jogando comigo e ele era muito bom. Mas eu não ficava para trás. Aquela era a minha profissão, não podia existir alguém melhor do que eu, era a minha vibe aquele jogo. Então eu e esse cara jogamos rodadas atrás de rodadas, ora um ganhava, ora era outro. Até que ele pediu pra parar (risos). Além de não aguentar, me elogiou, disse que nunca tinha encontrado alguém tão bom quanto eu. Ele disse que um cara bom como eu era, tinha que ter uma vida boa. Muito dinheiro e poder. Carros, gente cumprindo minhas ordens, porque eu era muito bom. Eu não tive dúvidas que ele estava certo. Aquele jogo de fato não era pra qualquer um. Era preciso ser inteligente, rápido e estratégico. Com certeza essas habilidades seriam valorizadas em algum lugar já que na escola e nos trabalhos da minha comunidade isso parecia não ter valor algum.
Depois de jogarmos outras vezes e esse cara sempre estar me falando o quanto eu era bom, ele finalmente me disse que apareceu uma vaga de emprego perto da casa dele. Havia chegado minha hora de ser valorizado. Ganhar meu dinheiro. Parar de levar bronca todo dia porque não tiro boas notas ou porque não faço as coisas em casa. Eu ia fazer um trabalho importante. Eu ia ser alguém importante. Claro que não pensei duas vezes. Organizei minhas coisas e fugi de casa. Meus pais jamais me apoiariam. Tudo que eu fazia gerava uma tempestade de broncas e aquilo não seria diferente. Só deixei um bilhete para minha mãe não se preocupar, afinal, apesar das broncas que ela me dava; ela sempre me deixou fazer o que eu quisesse. A única coisa que ela não me deixou fazer foi sair da escola, porque ela disse que seria presa se eu não fosse pra escola. Mas com certeza ela não deixaria eu ir morar em uma cidade grande com alguém que ela não conhece. Mas eu não pudia perder a minha chance para uma vida melhor. Eu até pensava em ajudar meus pais depois que eu tivesse curtido bem a vida depois de tantos anos me sentindo burro e inútil, sem nenhuma perspectiva, sem conseguir imaginar que futuro eu poderia ter. A única coisa que eu via, eram pessoas tristes reclamando daquela vida sofrida e dos trabalhos exaustivos. Eu me negava a ter o mesmo destino. Mas até receber essa proposta de emprego, eu não sabia como eu iria garantir um bom destino para mim.
Então fui.
Chegando na cidade grande, aquele meu amigo foi me buscar numa parada de ônibus antes de chegar na rodoviária. O cara tinha um carro da hora. Celular da última geração, pulseira de ouro, enfim, estava claro que ele era muito feliz. Ele falava muito errado. Até eu que não gosto de estudar, tinha hora que ficava meio impressionado, mas eu logo me acostumaria, pois todos que passavam por ele o cumprimentavam e alguns davam até um abraço. Ele era muito respeitado e todos gostavam muito dele.
Quando chegamos na casa dele, vi que ele tinha muitos funcionários que ele tratava como irmãos. Era muito legal ver o quanto ele era um cara do coração bom. E agora ele estava ajudando um moleque do interior que ninguém sequer dava atenção a não ser quando era pra dar uma bronca ou mandar fazer algo. Ele estava me dando dignidade.
Mas ele foi muito além de me valorizar somente, ele queria que minhas habilidades fossem reconhecidas por todos, então ele me deu um cargo que eu já ganharia uma moto nova.
O serviço era ser o mais rápido possível para entregar umas encomendas. Pareciam bombons. Eu só precisava entregar uma bolsa com esses "bombons" e pronto. Mas ele disse que esses "bombons" eram importados e portanto tinha um valor muito grande. E muitos caras ambiciosos queriam roubar esses "bombons". Me disse que tinha até polícia corrupta querendo botar a mão no produto importado. Eu teria que realmente usar todo meu conhecimento daquele jogo na vida real. Mas meu amigo me disse que não teria nenhuma situação que eu já não tivesse resolvido no jogo e por isso tinha certeza que eu me sairia bem na missão. Ele olhou sério e disse: "irmãozinho, não costumo confiar em novatos porque eles fazem muita merda. Mas você é um cara muito responsa, pega aqui minha arma pra garantir sua segurança. Ninguém nunca precisou, mas se caso precisar, sei que você se garante nas missões que pega. Vai na paz!"
Poxa vida! Eu realmente tinha encontrado meu caminho, ia fazer algo que eu era muito bom em fazer.
Peguei minha motona, pistola cromada na sinta e fui. Chegando lá, tudo foi tranquilo. Perdi a conta de quantas vezes eu fiz aquelas entregas e nunca tive problemas. Até que um dia, quando eu estava encostando a moto vários policiais estavam de tocaia. Não deu tempo de reagir nem fugir. Não entendo como aquilo foi acontecer. Eu nunca tinha vacilado. Eles foram muito mais rápido do que eram no jogo.
Fui preso!
Aqui onde estou preso eram pra ficar 8 detentos, mas somos 28. Pra deitar um pouco tenho que pagar. São 20 reais a hora pra descansar. Sai mais caro do que um aluguel em um bairro de classe média. Meus pais são aposentados. Ainda moram naquela comunidade pacata. Eles eram trabalhadores. Tiveram uma vida dura no trabalho pesado. Mas acho que eles sofreram menos do que eu estou sofrendo nesses primeiros meses aqui nessa prisão. Eu estava tão preocupado comigo que esqueci de contar pra vocês que eu tenho um irmão. Na verdade eu nunca gostei muito dele. Ele sempre foi o queridinho de todos. Mas também, ele não tinha personalidade. Fazia da melhor forma tudo o que lhe mandavam. Era um ótimo aluno. Aprendeu a trabalhar com criação de animais de pequeno porte. Ele fez até faculdade de veterinário e hoje vive naquela mesma comunidade parada. É o único veterinário da região. Trabalha no pesado e as vezes atende algum cliente. Ele até que ganha um bom dinheiro quando vende as galinhas, ovos, porco e ovelhas. Mas ele só vende quando precisa comprar algo ou quando quer fazer uma viagem a passeio ou para fazer novos cursos de aperfeiçoamento. Pra falar a verdade ele tem uma vida boa. Acho que esse negócio de trabalhar no pesado é café pequeno perto dessa vida que eu acabei caindo. Mas o que mais me deixa revoltado é o preço que eu pago para poder deitar poucas horas por dia aqui.
Criado em 31.08.2019 por Batoré de Garanhuns.
Comentários